De como o Juca mudou a nossa vida
António Lobo Antunes*
Quando o meu filho nos disse que queria mudar de sexo fiquei um bocado embatucado. A minha esposa reagiu pior, a levantar-se da cadeira
- O quê?
julgando ter percebido mal
- Repete lá, repete lá
O Juca, chama-se João mas tratamo-lo por Juca, essas coisas que ficam da
infância, cruzou melhor a perna no sofá
- Quero mudar de sexo
um rapaz como deve ser, com bigode, que foi paraquedista na tropa, uma
tatuagem que dizia Herói dos Ares no braço direito, todo músculos, todo
ginásticas, a insistir sereno
- Quero mudar de sexo
a acrescentar
- Descobri uma mulher em mim
numa firmeza tranquila, e só então reparei que a unha do mindinho
esquerdo envernizada. No resto não mudara nada, jogava polo aquático nos
Golfinhos Aguerridos, saía com os amigos para as festas do Lisbonense, até me
pareceu que namorava uma mulata chamada Orlanda que, para mulata, não nos
parecia mal embora tivéssemos algumas reservas para com netos pigmentados mas
isso era o menos, há pretos que, por vezes, chegam a ser quase tão inteligentes
como os brancos e um primo meu é amigo de um africano engenheiro, dado a
pontes e esgotos. Antes que eu perguntasse ao Juca
- E a Orlanda?
explicou-me que a Orlanda achava a ideia interessante, o que diminuiu um
bocadinho o meu conceito dos pretos, a minha esposa, num cicio
- Estás a brincar não estás?
porque, volta e meia, o Juca era dado a piadas mas limitou-se a
teimar
- Descobri uma mulher em mim
e quando se descobre uma mulher em nós, informou-me o psicólogo, o
melhor ainda é não contrariar o destino, o problema foi quando o Juca
acrescentou
- Não tenho dinheiro para as operações
e eu a ver herança do meu tio pelo cano abaixo e o escândalo dos
vizinhos. Fomos com o Juca ao psicólogo, ficaram a conversar horas sozinhos até
o doutor nos vir explicar
- Realmente tem uma mulher nele
os amigos do Juca deixavam de ser paraquedistas para se tornarem
criaturas estranhas, de voz grossa e gestos finos, que injectavam líquidos
espessos no peito, tratavam a minha esposa por
- Ai flor
me gabavam ao Juca
- O teu pai é um pão
a tentarem beijar-me a orelha e eu a afastá-los com o cotovelo,
embaraçado do pão, embaraçado dos beijos, enquanto as nádegas do Juca iam
aumentando a pouco e pouco, usava saltos e um anel no indicador do tamanho de
uma pedra da calçada. A certa altura um homem loiro começou a aparecer lá em
casa, o Juca apresentou-o
- O meu namorado
e ficavam de mãos dadas a olhar um para o outro, acariciando-se o
pescoço. A minha esposa fitava-os de banda, eu aceitava mais ou menos
- O teu pai é um pão
desde que as coisas se passassem com respeito, o Juca principiou a usar
vestidos cada vez mais curtos, arranjou amigas chamadas Marlene, Rebeca e
Susaninha, que se estendiam nos sofás em atitudes langorosas, a Susaninha,
comparada com a minha esposa, até nem era feia e as pestanas postiças não lhe
ficavam mal, gostava de conversar comigo com o nariz a um centímetro do
meu, a minha esposa começou a torcer o dela àquela intimidade sobretudo quando
a Susaninha deu em tratar-me por chuchu, que até achei engraçado, o Juca
- Parece que estás apaixonada pelo meu pai Susaninha
a Susaninha, mais pestanas do que nunca
- Por acaso estou
e a minha esposa a levantar-se da sala
- Só me faltava esta
para se trancar na cozinha a resmungar insultos, deixando-me com a Susaninha
que não me tratava por
- Abílio
tratava-me por
- És o meu Titã
apoiando-me dedinhos trémulos no joelho, a suspirar exalações da alma.
Tudo o resto se passou depressa e não me arrependo. O homem loiro instalou-se
no quarto do Juca, a Susaninha no meu e a minha esposa foi viver para casa de
uma prima. Deixei de trabalhar porque a Susaninha não consente
- Quem trata do meu Titã sou eu
trabalha, com o Juca e o namorado, num bar, como bem, não tenho de
ocupar-me, ando melhor vestido, a Susaninha parece-me feliz
- Quem é a dona deste Titã quem é?
e sinto-me melhor com ela do que a minha esposa, sempre exigências e
birras. Na realidade não a tenho visto, a Susaninha basta-me. Ainda agora me
comprou um anel de ametista verdadeira, ainda agora me prometeu que no ano que
vem temos um automóvel para as férias. Quanto ao resto é mais ou menos como as
mulheres, não há assim diferenças por aí além. Quer dizer talvez haja mas faço
os possíveis por não reparar nisso. Não é tão custoso como se pensa.
Aborrecem-me um bocado os calos nas mãos, aborrece-me a voz que engrossa mas,
esquecendo isso, aguenta-se. E depois é sempre bom vermos quem nos arranje um
cano ou desentupa a torneira, termos quem nos defenda das piadas na rua. A
Susaninha traz sempre um tijolo na carteira, toma balanço e resolve as
questões. De tempos a tempos impacienta-se comigo. Mas qual a importância de
uma bofetada se, depois, me pede desculpa a chorar até as pestanas lhe caírem?
E eu, passados uns minutos, perdoo. Parece que a minha mulher voltou a casar-se.
Não acredito lá muito. Imagino-a melhor sozinha, com o gato, diante da
televisão.
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