[CONTO] Augusto Sou Eu



A vida parada da cidade o assustava. Nada acontecia. A fumaça que saia de seu cigarro parecia-lhe o maior aspecto de movimento. Mas logo se dissipava e ia embora pelo ar, para algum lugar que lhe esperasse. Era assim com a fumaça e com as pessoas. Se não são as pessoas cigarros tragados pelo tempo?
As almas se arrastavam pelas ruas, como pândegos deprimidos ao fim do festim. As vielas entupidas de coisa alguma, desalegravam-se ao passar das horas. Ele caminhava entre os infelizes. A cabeça baixa, concentrado. As pernas magras, no entanto fortes. Os dedos, longos e esguios, visitavam sempre a testa, como num movimento repetitivo e rotineiro. Depois à barba. Repetia todos os dias a mesma coisa. Todas as horas. Que se arrastavam.
À porta de casa parava. Girava lentamente a maçaneta. Esperava uns instantes, talvez um ladrão pudesse lhe trazer alguma atividade. Nada. Jogava as chaves sobre um pequeno cinzeiro que preservava à esquerda, acima da escrivaninha antiga. Ia até a geladeira, buscava a água. Bebia sempre três vezes, em três copos diferentes. Era sozinho, como se não quisesse trair a solidão. Seus anos à frente da disciplina Literatura Brasileira IV renderam-lhe o hábito de ler. Era o titular.
Caçava sempre um bom livro para reler na sua biblioteca. Os brasileiros sempre foram seus prediletos. Alphonsus de Guimaraens, Olavo Bilac, Mário Quintana, Bandeira, Gregório, amava a todos. Aprazia-lhe muito mais a métrica e o som que qualquer outra coisa. Ojerizava Drummond, mantinha-lhe um ódio descomunal. Sempre fora uma pedra em seu caminho. E declamava os versos bilaquianos às alturas, sabia de cor toda obra de Gregório, ria-se do humor do baiano. Divertia-se sozinho, loucamente com suas poesias. Jamais arriscara um verso.

Era 2010. Ele desceu do ônibus demonstrando dificuldades de velho, apoiando-se num jovem a sua frente. Agradeceu e seguiu o caminho. Era uma quinta-feira à tarde. Pouco movimento no centro da capital. Carros escassos, lentos, passeavam. Atravessou a rua devagar, mas sem perigo. Caminhava manco, propositalmente. Recitava baixo uns versos de Augusto, “lembro-me bem. A ponte era comprida, e a minha sombra enorme enchia a ponte...”, e a sua sombra esguia quase não existia às quatro da tarde. As pessoas lhe ignoravam, escutando-o baixo. E ele entoava, e esquecia-as.
Entrou pelo portão principal. Era grande e vermelho. Caminhava a passos curtos. Uma roupa escura, sapatos de couro. Vivia bem. E continuava, “e aprofundando o raciocínio absurdo, eu vi, então, à luz de áureos reflexos...” até que uma moça loira, porte altivo, lhe interrompe:
- Posso ajudá-lo, senhor?
- Ah, sim. Estou procurando o Seu Messias, ele está?
- Sim, mas... quem é o senhor?
- Sou o Silva, ele conhece! -  e abriu um sorriso amarelo.
A moça resolveu ir à sala de Messias, gerente do local. Era uma casa de cultura. Nenhum evento acontecia àquela hora. O movimento era calmo. Poucos visitantes, a maioria crianças, que vinham com suas escolas conhecerem o planetário e exposições que de épocas em épocas apareciam por ali. Chamava-se “Espaço Cultural Arturo Gouveia”, uma homenagem a um contista da cidade. As paredes deterioradas traduziam o esquecimento do local por parte dos governantes. Fora, um dia, muito importante.
- Ele disse que o senhor podia entrar. – apontando o local, disse a moça.
Na sala, um senhor gordo, com um bigode inchado e chapéu sertanejo lhe esperava. Na parede do lugar, quadros e mais quadros com xilogravuras. Um violão escorado próximo à mesa dava os últimos tons culturais ao local. O professor abriu a porta devagar, como todos os seus movimentos.
- Grande Silva! Você veio mesmo?!
- Tinha que vir, você me convenceu. Onde estão elas?
- Calma, rapaz. Você quer tomar alguma coisa?
- Não, muito obrigado. – cordialmente – Onde elas estão?
Messias o olhou confuso. Silva não parecia tão cordial quanto sua voz. Pousou a mão na primeira gaveta da mesa, puxou-a, e de lá retirou uns papeis. Olhou-os um por um, com os óculos à beira do nariz. Às vezes olhava também para Silva que, impaciente, esperava.
- Pronto, aqui estão. – dando os papeis a Silva.
O professor os recebeu, olhou-os um por um, como havia feito Messias. Passando as páginas, e rindo-se. O bigodudo o encarava, apreensivo. Até que Silva manifestou-se, alegremente:
- Vamos lá para casa, redijo o prefácio para você lá.
Messias, espantado, hesita, mas concorda. Estranhamente aceita a proposta do professor. O nome do famoso doutor Armando Silva Mascarenhas com certeza o poria na mais alta roda da literatura do estado. Um livro de poesias recomendado por ele iria vender como água. No sertão. Foram no carro do gerente. Este, perguntava-se a todo instante porque teria de ir junto.
- Tenho que te fazer algumas perguntas quando estiver escrevendo, por isso preciso de você lá. Essas coisas são difíceis de fazer, a gente tem de apreender a alma da obra, entender os mecanismos. Fazer uma boa propaganda, entende? Às vezes a obra não precisa de conteúdo, é só saber vender o peixe... – e riram. – não que a sua não seja boa, claro. – e olhou seriamente para Messias que, num gesto com a cabeça, desculpou-lhe pelo mal entendido.
Chegaram à casa do professor. Ao entrar, Messias encantou-se com a quantidade de livros que viu. Parou um pouco para observar tudo, embasbacado. Num instante perguntou-se como seria poeta sem ter lido aquilo tudo... mas ele só queria vender.
- Devo lhe dizer que livro já não vende tanto hoje em dia. – disse Silva, trazendo dois copos de wiskhy nas mãos.
- É, tô sabendo. Mas faço por amor. Se um dia eu morrer, que seja de poesia! Porque sem a poesia eu fico deprimido, é minha alegria sem forma de comprimido... tá vendo? Já fiz uma! – e riu-se. Messias sabia do momento que vivia o mercado. Tudo se vendia, não importando a qualidade. Bastava uma publicidade eficiente, o que ele conseguiria com o prefácio do Silva.
- Sei... – respondeu Silva, levando o copo à boca. E o olhando por cima dos óculos amarelados.
Já sentado e de computador em mãos, o traço do word piscando lhe dava o sinal para começar a escrever. Messias instalou-se no sofá, quieto. Silva começou a declamar algumas poesias para ter ideias para o prefácio: “Hoje em dia é assim/ quase não sendo, sei lá/ um dia poderei rimar/ você com um pedaço de mim/ Você com algodão doce/ criança que meu pai trouxe/ pra longe do meu festim”. E declamava alto, Messias empolgando-se. O modo de declamar transformava a poesia, o poeta imaginava-se nos jornais, no Jô, nas livrarias dando autógrafos...
- É isso? É isso que é poesia? Isso que é poesia pra você? Onde ficam os grandes conflitos da humanidade? Onde está a sonoridade? – levantando-se da cadeira – As grandes dúvidas? Onde estão? Quer que eu te fale o que é poesia? Quer? – sacudindo os papeis em mãos. – Poesia é um decassílabo, é alma e som, é forma e som, é som, é som! – Messias pregado no sofá, amedrontado com a reação do professor. – Poetas surgem todos os dias, Messias, você é só mais um!
- Ei, era só dizer que não faria e...
- Cala a boca, seu gordo safado! Cala a boca...
Messias tentou levantar, mas sentiu-se tonto. Duplicavam-se as coisas. O céu, azul veríssimo, apagava-se entre as frestas da cortina. Ao longe escutava os berros do professor. Cada vez mais longe, “você e seus merdinhas de companheiros são uma vergonha! Vocês estão matando a literatura! Seus merdas! Mas antes disso eu mato vocês! Todos vocês...” Apagou-se, o poeta.
No centro da saleta escura, o corpo declinado para frente, sobre a mesa. As mãos acorrentas. O corpo de Messias parecia morto, mas aos poucos o poeta se mexia. A visão embaraçada permitia-lhe pouco. Do mínimo visto, o rosto de Silva resplandecia. Este que, aos berros, começou a recitar: “Arte ingrata! E conquanto, em desalento,/ a órbita elipsoidal dos olhos lhe arda/ busca exteriorizar o pensamento/ que em suas fronetais célula guarda...” Messias ouvia atento, ainda com a cabeça caída sobre a mesa.
Silva aproxima-se lentamente. Passos calmos e insanos. “Tarda-lhe a ideia! A inspiração lhe tarda!”, grita! O poeta amedronta-se. Silva abaixa-se, olha-o no olho... “E ei-lo a tremer...”
- Isso aqui é Augusto dos Anjos, poeta! Conhece? – pergunta, de olhos inquietos.
- Sim. – trêmulo, o poeta responde.
- Você é poeta, Messias? É poeta? Você é aquele a quem os jornais apontam “o Salvador da poesia”? Aqueles a quem respeitam mais do que um dia respeitaram Augusto? O Rei da poesia!? Você é este poeta, Messias?
- Como todo respeito, Silva... –trêmulo, reerguendo a cabeça – eu só faço versos!
- Você vende versos, Messias! Você é bom para vender! Você é do mundo capital! E onde fica a porra da poesia?! – pausadamente, ao ouvido do poeta.
Segurando firme o queixo do Salvador da Poesia, como era conhecido Messias, Silva encara-lhe.
- Você tem vinte minutos para compor um soneto. E tem de ser em decassílabos heroicos. A cada dois minutos, um dedo vai-se embora. – os olhos arregalados de Messias denunciavam-lhe o medo.
- Você é louco, seu velho filho da puta!?
Tentou levantar, mas percebeu estar preso à cadeira por uma corda apertada.  A cadeira, por sua vez, chumbada ao chão. As mãos acorrentadas à mesa. Silva pegou uma outra corrente próxima a si, e passou por volta do pescoço de Messias, puxando-lhe a cabeça para trás.
- É melhor me obedecer, artista... Augusto dos Anjos sofreu muito para ser poeta. Você acha que vai ser bom sem sofrer? De onde virão seus versos? De que dores? – um riso desconcertado enchia a sala àquele momento.
Soltando o pescoço do poeta, Silva dirige-se a uma cadeira ali próxima. A sala era pequena, pouca iluminação. Em cima da mesa apenas uma folha de papel e uma caneta de escrita fina. Acima, uma lâmpada fraca completava o cenário tantas vezes visto por Silva em filmes de serials Killer.
- Aqui está o cronômetro. O tema você que escolhe. Aqui, o alicate. Dois minutos e tchu... menos um dedo! Então é melhor pensar rápido! Antes, antes que você queira contradizer meus métodos, vai ganhar uma lição. Vai aprender como se sente o poeta quando há de fazer seus versos e a inspiração lhe tarda. E as palavras não saem.
Retomou a corrente, puxando a cabeça do Salvador para trás. Com o alicate na mão direita esperou o grito do poeta que, ao abrir da boca teve sua língua removida por um estralo rápido e cremoso, como se o músculo deslizasse entre o instrumento. Para não engolir o próprio sangue, o algoz empurrou de volta a cabeça de Messias à mesa. O sangue pingando, ao passo dos segundos que começavam a correr no cronômetro. O poeta contorcia-se de dor ao ver o sangue no sobre a mesa. Grunhia como um bicho dolorido. Nenhuma ideia vinha a sua mente, apenas dor.
Um minuto e vinte e sete. O poeta pega a caneta para escrever suas primeiras palavras: “Filho da puta, você...”, Silva dá-lhe um tapa na orelha esquerda. Grita-lhe, pergunta-o o que pensa da vida, da poesia. Ele quer algo sério. Messias chora. O cronômetro para em dois minutos.
- Tá vendo? Dois minutos. E o que você fez? Nada? Nada, seu merda? Nada!? Eu estou lhe dando a chance de me provar que é mesmo o Salvador da Poesia. Só seja você mesmo e vai escapar! – e ria desconcertado, uma risada estridente, mas grossa. – já não basta perder a língua? Viu como é ruim puxar e repuxar a língua e não vir à boca nenhuma palavra? Augusto dos Anjos era diferente! Aquilo que era poeta! Mas você? Você e esses merdinhas que rimam? Vocês são uns merdas! Uns merdas!
Buscou a mão esquerda do poeta, segurou-a firme. Messias perdera as forças. Casara-se de batalhar ante a tortura. O dedo mínimo entre as hastes do alicate. O algoz pôs força, embora seja difícil partir o osso. Messias grunhiu desesperadamente, esticando as pernas, enquanto o estalo confirmava a perda do dedo. Caía solitário, no chão, o pequeno mínimo com o sangue o banhando.
Assim foi por mais dez minutos. A mão esquerda perdera todos os dedos. Messias estava morrendo devido o sangramento. Os versos não saiam, naturalmente. Ao decepar do sétimo dedo a vida expirou do corpo do poeta. Tombou para a frente, manchando a mesa de sangue, que escorria-lhe da boca, ainda. A mão esquerda pingando o vital líquido. O algoz ficou por trinta minutos imóvel, observando a cena. Repetindo para si os versos de Augusto: “Tenta chorar e os olhos sente enxutos!/  E como o paralítico que à míngua...”

Sentou-se na poltrona confortável. Largou o jornal que trazia consigo na banquinha à frente. Na estante buscou o Eu e Outras Poesias, de Augusto. No índice, olhos atentos, no entanto calmos. Buscou com os dedos um dos poemas, folheou e encontrou. Lia para si, olhando para cima e para o livro. Pensativo, assumia uma feição satisfeita, como o cirurgião lavando as mãos após seu trabalho.
Após beber seus três copos d’água, foi ao banheiro. Tomou uma toalha cor de vinho que estava pendurada ali próximo, enxugou suas mãos. Novamente na sala, papeis em mão, começaria o novo projeto.

0 comentários:

Postar um comentário