[MINHAS LEITURAS] Dois Copos de Cólera

                    



por Felipe D'Castro

                    Em “Lavoura Arcaica” (1975), de Raduan Nassar, a instituição familiar é pintada em tons de guerra, e dois pelotões são destacados desde o início: um liderado por Iohána, patriarca da família; outro, liderado por André – que mais tarde descobre seu único soldado, Lula.
            O romance, que apresenta várias alusões à Bíblia, ganha força pela linguagem do protagonista, que maltrata o leitor e ao mesmo tempo entrega-lhe a um prazer confuso que só a literatura é capaz de ofertar. Os conflitos de André, que somente podem ser resolvidos dentro de sua própria consciência, são gerados a partir de uma relação conflituosa com sua família, cuja repressão patriarcal maneja em curtas rédeas o comportamento. A repressão de Iohána, que prega – por meio de sermões à mesa, inclusive – a união familiar e o amor como uma liga sanguínea incorruptível e necessária, bem como os deveres de cada um naquela casa, que trabalharia em prol do crescimento de um todo homogêneo, desenhou em André a marca do deslocado, a marca da inutilidade estimulada, uma espécie de repulsa à retidão ditada que se propunha sob aquele teto. A parte isso, o rapaz tocou na face do amor que mais chagas poderia lhe causar: o amor pela sua irmã Ana.
            Diante da impossibilidade deste amor, que era carnal, que era amor para além da alma, para além do sangue, André se vê ainda mais distante daquele pórtico de normalidades incitadas, e joga-se dali para um mundo distante, fabricador de desilusões, fugindo de casa. O amor pregado pelo pai passa a ser, a esta altura, “pedra de tropeço”, e ao contrário do que gritava o patriarca, André conclui que o “amor nem sempre aproxima, o amor também desune”. Neste ponto do romance, é colocada em xeque a validade do amor familiar e a própria estrutura da família. André, por meio de suas palavras coléricas, lança projéteis sintáticos ao leitor que, certamente, acusa o golpe e percebe na sua própria carne da consciência o quão coerente está sendo aquele agastado personagem.
            Pedro, irmão mais velho de André e aluno exemplar de Iohána, tem o dever de trazer de volta à casa o irmão. A família ficara em desassossego após sua partida, complexa corrente de fogo contra a qual um sopro apagara um elo. E é no quarto de uma pensão, com a chegada de Pedro, que a narrativa tem início. A complexidade estrutural no decorrer do romance demonstra um desrespeito (saudável) para com o leitor; a linguagem do protagonista é obscura e de aparente coesão forçada, o que traduz de forma clara os conflitos por que passa André em sua consciência; o que se quer dizer é que a experiência que se tem ao ler este romance é a de que se é puxado para o mundo de André e, por muitas vezes, para a sua própria cabeça. A leitura é algo que incomoda bastante, e o incômodo é o que constrói a boa narrativa, pois é preciso tirar o leitor da sua zona de conforto; aliás, o desconforto deveria ser a primeira lei da boa literatura, se houvesse uma ditadura das letras.

            “Lavoura Arcaica” conta uma história de desunião que parte da união, uma história que desenha o Tempo como Deus e que tem paciência para destruir nossa ideia de amor familiar. André retorna para casa, e o que acontece após isso só aqueles que se permitirem arriscar por essa impactante descoberta do desamor poderão saber. O que fica é a ira discursiva de André, que joga uns dois copos de cólera no rosto do leitor.

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